Silva, como era conhecido na tropa, nasceu no Huambo, província central de Angola, e viveu desde cedo as agruras de uma guerra que arrasou o país, principalmente na sua região, onde os confrontos foram mais violentos, já que o poderoso chefe da Unita se encontrava ali instalado. Foram momentos dificeis, nos quais não sobravam sequer os animais domésticos. Durante os períodos de desabastecimento, os cães e gatos desta região proporcionavam verdadeiros banquetes para a população. Silva cresceu nessa área e logo aos quinze anos foi recrutado para a tropa do MPLA, onde se formou tanquista
Durante oito anos, serviu na frente leste do país, até que que em 1992, com o acordo de paz, foi desmobilizado e voltou à vida civil. Traumatizado pelos tempos de guerra na província, onde o mau cheiro dos cadáveres levaram as pessoas a enterrar seus entes nos próprios quintais, onde as crianças tinham seus olhos azulados vítimas da desnutrição, onde a população disputava cada cachorro vivo para saciar a fome, o tanquista rejeitou o retorno, avaliando que Luanda oferecia mais oportunidades.
Silva abandonou a escola em função da tropa e, posto em Luanda como civil, descobriu que não tinha tantas possibilidades de emprego. Tudo o que sabia fazer com destreza era dirigir tanques e manejar armas. Diante dessa constataçao, Silva se apresentou e conseguiu um serviço numa empresa privada de vigilância, sendo destacado para controlar uma residência. O serviço era bastante monótono, mas Silva já tinha desenvolvido uma capacidade enorme de dormir em pé. Ele, que sempre gostou de um bom sono, se especializou nesta modalidade durante os momentos dificeis da guerra, quando tinha que matar o tempo e manter a vigilância, muitas vezes com fome, naqueles períodos em que não havia combates.
Com toda a técnica adquirida, Silva conseguiu ir se adaptando a nova realidade. A casa era uma vivenda grande de uma família tradicional de Luanda, no bairro da Vila Alice. Silva, resignado, até se adaptou ao salário de quarenta dólares por mês, pois ofereciam como bônus refeições gratuitas distribuídas nos postos de serviço, comida suficiente para aplacar a sua fome.
O cardápio era sempre o mesmo: peixe frito com funge, e eventualmente se desse sorte, um pouco de arroz. Para além do pouco tempero e excesso de óleo, o problema é que a comida invariavelmente chegava em suas mãos muito fria, pois ele era dos últimos vigilantes a receber o seu prato, vítima do trajeto do carro de abastecimento. Contudo aquilo lhe servia e Silva devia dar graças a Deus, pois num país com tanto desemprego e fome ele pelo menos tinha garantido o alimento e algum dinheiro para gastar.
Apesar de conformado com a sua situação, às vezes a refeição demorava e a fome apertava. Nesses momentos o cão do dono da casa passava a despertar a cobiça de Silva. Ainda permanecia na sua memória olfativa a carne assada, servida durante aqueles períodos de desabastecimento, aquilo acabava por se confundir com o cheiro que exalava impiedosamente da cozinha da vivenda.
Mas Silva, sabia do apego do chefe ao cão; bonito, gordo, com os pêlos bem tratados e sedosos, que a seu ver faziam inveja a própria esposa do chefe, uma mulata que passava as tardes nos salões de beleza a tentar alisar os cabelos. O cão era um pastor, e assim como sua origem, tinha um nome alemão: Helmut.
Por mais que Silva soubesse o quanto seria condenável não conseguia se desvencilhar da imagem daquele cão girando num espeto. A possibilidade de pensar na imagem já o atormentava terrivelmente, ainda mais nos momentos que antecediam a chegada da sua fria e oleosa refeição.
Silva olhava para a sua arma, uma kalashinikowski, olhava para o cão, mirava uma barra de ferro que servia como tranca da casa, voltava a ver o animal, e a cada dia a angústia aumentava. Silva já estava considerando a possibilidade de um impulso instintivo, mas o medo das consequências lhe perseguia.
Para lidar com o conflito e poder exorcizar aquela imagem tão desejada, o guarda começou a se aproximar do cão, ficar mais amigo, brincar e, desta forma, impulsionou uma espécie de freio para os maus pensamentos derivados da sua gula.
Com a proximidade, ele passou a constatar que muitas vezes aquele cheiro que o aturdia diariamente era originado do preparo da refeição de Helmut. Passou a perceber que a comida servida ao animal era muito atraente e combinava uma ração de muito boa aparência com suculentos pedaços de carne, servidos muitas vezes, em meio a arroz e feijão.
A proximidade, minimamente, trouxe resultados positivos: Helmut, girando por cima de uma boa fogueira, deixou de ser o objeto de desejo do vigilante. Ele agora passava a esgorjar a refeição destinada ao quadrúpede. Os dias foram passando até que Silva decidiu experimentar daquela atrativa ração servida ao cachorro. Provou e aprovou. Constatou que aquela refeição realmente dava muito jeito.
Confirmada a teoria, Silva começou a se fazer sócio de Helmut nas refeições. Todos os dias, antes de colocar o prato no local habitual, ele enchia as mãos com a ração que funcionava como uma entrada para a seu repetitivo menu. Ele defendia que o cão havia de pagar um pedágio pelo seu trabalho.
Os dias foram passando, mas o velho peixe frio com funge banhado em óleo não mudava. Diante essa realidade indigesta, começa a crescer a ambição de Silva pela refeição de Helmut. Ele já não se contentava apenas com uma entrada. Agora, para além do pedágio, ele passava a dividir a mesa, digo, o chão, e partilhar o restante da alimentação do animal. Mesmo na condição de sócio, seu estômago continuava a se queixar da falta de mais comida, já que ele ainda era obrigado a recorrer ao peixe indesejável para aplacar completamente a fome.
Por sua vez o cachorro começava a se ressentir da partilha indesejada, começava a esboçar, todos os dias, uma certa agressividade quando o vigilante se sentava ao seu lado já com a boca cheia. Para a contrariedade de Helmut, Silva, sem perceber, a cada dia aumentava a velocidade da sua mastigação, afim de abocanhar a maior parte da ração. Foi quando o segurança teve uma grande idéia: trocar definitivamente a refeição fria que lhe era de direito pela ração do cão. Dessa forma ele ficaria saciado e bem nutrido e o animal não ficaria com fome. Silva achado a grande solução e assim pôs em prática o seu plano.
Porém, Silva não considerou a possibilidade de Helmut não se adaptar ao horário da empresa e, pior ainda, rejeitar a comida. Dito e feito: Helmut não aceitou a troca e passou a colocar em prática uma greve de fome. Os dias foram passando e a dieta compulsória do cachorro começou a mostrar resultados. Ele começou a emagrecer, a perder o brilho, os pêlos começaram a cair e a apatia se abateu sobre o animal. O chefe notou a transformação e não se conformou. Levou Helmut ao veterinário, comprou medicamentos e Helmut não reagia. O dono da casa, na busca da identificação do problema, sempre indagava Silva sobre o que poderia estar acontecendo para o cão estar assim tão abatido. Para a felicidade do vigilante, dentre as medidas tomadas, o chefe mandou que reforçasse a comida do cão, agora já era carne de primeira com rações importadas de Portugal.
Diante da persistência do problema e da falta de recuperação de Helmut, começaram a desconfiar de que estava a acontecer algo de muito errado. Foi quando, num dia de semana, o chefe chegou em casa mais cedo e flagrou Silva tentando convencer Helmut de que ele tinha que comer para não morrer. O chefe se aproximou e percebeu que a atenção disponibilizada pelo guarda era no sentido de tentar fazê-lo comer o peixe com funge servido pela empresa de segurança. Foi o suficiente para Silva ser enxotado da casa pelo chefe que, munido com a barra de ferro da tranca, gritava pela rua e corria atrás do Silva: pega ladrão, assassino, assassino, gatuno de merda, não respeita nem a comida dos outros.
Silva foi afastado da casa e demitido da empresa. Hoje vive em Luanda a vender churrasco e já não quer mais saber de cães, ou melhor, de cães com dono.
Luanda, 8 de Agosto de 2007.