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2005 - 30 anos

TAGS: passado,independência,história,angola

O Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir a escravatura; nos Estados Unidos, em 1950, ainda havia prioridades para os brancos nos ônibus;  o homem chegou a Lua há 34 anos; o muro de Berlim caiu há 16; o regime de Apatheid sul africano só foi removido há onze anos; o Presidente Kabila, do Congo, foi assassinado há cinco anos. Angola só conseguiu a sua independência em 1975, Angola só encontrou a paz em 2002, há apenas três anos.

Memória: é incrível a força e a relatividade das nossas lembranças. Tenho vivido em Angola nos últimos sete anos e, recentemente, conheci um rapaz que apesar da sua juventude muito me surpreendeu pela lucidez com que referencia e reverencia o tempo, ele chama-se João, igual ao seu pai, João Domingos.

João tem apenas trinta anos e como a maior parte dos angolanos teve uma infância sofrida e difícil. Logo cedo perdeu o seu pai e se desdobrou entre os estudos e o trabalho que foi obrigado a conseguir para ajudar a sua mãe. Na décima classe, João se integrou ao Exército e abandonou os estudos. Hoje, ele conseguiu voltar a estudar e o seu filho João Domingos, de sete anos, também está na escola e, para orgulho do pai, já se define um futuro médico.       

João Nasceu seis meses antes da Independência de Angola. Naquele ano, já se somavam 483 anos da chegada dos portugueses com Diogo Cão, 483 anos de colonização. Nesses 483 anos, Angola conseguiu desenvolver a agricultura, chegando a ocupar o posto de maior produtor mundial de café. Esses 483 anos foram necessários para que se conseguisse integrar o país através das estradas e dos caminhos-de-ferro, para se construir cidades inteiras, para implantar indústrias e fortalecer a economia da colónia da qual Portugal era tão dependente. Foram tempos de prosperidade para a Angola e os seus habitantes portugueses.

João poderia achar que, se tivesse vindo ao mundo 30 anos antes, ele poderia ter concluído a escola. Mas ele sabe que não… Ele conhece a historia do seu pai que, assim como milhões de angolanos, teve negada a oportunidade de frenquentar uma escola. Ele me refrescou a memória quando me falou das condições exigidas para que um negro pudesse ascender a uma vaga na escola oficial e reconhecida:

 1 - A família logo cedo deveria tentar achar uma vaga nos cursos promovidos pelas igrejas. Se conseguisse, deveria passar ali quatro anos para aprender a ler e escrever. 

 2 - Vencido o primeiro obstáculo e de posse de um atestado de leitura e escrita do português, a família se dirigia à administração local e requeria o estatuto do assimilado para o “indígena”. Com o requerimento, a criança faria os testes e a família receberia a visita de uma comissão para checar se tinham abandonado todos os “usos e costumes da raça negra”, se comiam de garfo e faca, se eram adeptos da monogamia, se as mulheres usavam vestidos em vez de panos, se dormiam em camas… 

3 - Aprovada, a criança ingressava no primeiro ano da escola formal e poderia teoricamente chegar ao quarto ano onde era confrontada com uma série de exigências para poder seguir o curso. A mais cruel delas é que a criança, que teve que retardar o seu ingresso na escola em quatro anos, teria que obedecer a idade limite de doze anos para poder ingressar no Liceu. 

Na prática, os estudos tinham de ser interrompidos. Poucos, muito poucos, conseguiam transpor esta série de exigências. O próprio pai de João foi vitima desse sistema perverso a ele foi negada a condição de assimilado, embora fosse completamente alfabetizado. O descompromisso com a educação era tão escancarado que Angola só contou com a sua primeira universidade e teve aumentado o número de Liceus para o curso médio (eram apenas três), em 1962. Foram necessários 470 anos e uma luta armada recém constituída para que o país tivesse um curso superior. 

O senso de 1950 não deixa dúvidas sobre esta realidade. A população se dividia da seguinte forma: 78.826 brancos; 29.648 mestiços; 4.036.987 negros. Isso totaliza uma população de 4.145.266 habitantes, dos quais só 30.809 eram  assimilados, habilitados a cursar a escola formal, o que não quer dizer que conseguiram conclui-la.

O pai de João, anos depois, também foi vitima de outra faceta do sistema autoritário implantado pela ditadura salazarista: o sistema do “trabalho obrigatório”. Naquela época os angolanos foram arrancados de suas cidades para trabalhar nas fazendas de café do norte e centro do território, sendo remunerados basicamente com a comida.

Com uma certa tristeza, João lamenta que o seu pai não tenha conseguido usufruir da independência. Quando o provoquei para saber se ele não pensa que o seu pai teria se frustrado com um processo tão sangrento e violento que se seguiu ele retrucou imediatamente:

- “Não. Ele saberia que agora estava a lutar pela sua terra, ele teria desfrutado mais da vida sem o chicote, da vida com liberdade. Talvez passasse fome e dificuldades, mas ele teria dignidade e orgulho porque enfim ele estava a defender o que era seu. Meu pai entenderia que o nosso país foi vitima de uma transição mal feita, onde o então Governo Português menosprezou as consequências da liberdade de ação dada aos grupos de direita instalados no país a funcionar como esquadrões da morte, que invadiam os musseques à noite para matar os negros simpatizantes dos movimentos populares independentistas. Foram esses mesmos grupos que estimularam o pânico entre os portugueses e o saldo destas acções foram mais de 500 mil pessoas abandonando o país em menos de um ano. Meu pai entenderia que, quando o seu MPLA assumiu Angola, quase a totalidade daqueles que tinham formação técnica haviam partido e o Movimento não possuía sequer quadros técnicos para gerir Luanda”.

João tem razão Angola teve talvez a pior transição de colônia para país independente entre as nações africanas. Foram 41 anos de guerra, 27 dos quais no pós-independência. Como usufruir os benefícios da independência em meio a um conflito armado? Mais uma vez ele me chama atenção para o detalhe mais importante para que se possa avaliar com equilíbrio o momento atual: o fato do país estar a completar apenas trinta anos, um país tão jovem quanto ele:

- “Sérgio, nós temos trinta anos e conquistamos a paz há menos de três anos. É muito pouco tempo para tudo, é muito pouco tempo para construir um país, para consolidar as suas instituições, para promover uma melhoria na qualidade de vida das pessoas. Quantos anos foram necessários depois da independência para tornar o Brasil esse gigante que é hoje? O colonizador precisou de 483 anos debaixo de violência para deixar Angola como era, são dezesseis vezes mais tempo do que os angolanos tiveram e mesmo assim olhas para o país hoje e é completamente diferente do que há cinco anos atrás, veja quanta coisa foi feita nesse curto espaço de tempo com a paz.”

Achei impressionante a lucidez desse rapaz, principalmente a percepção que ele tem em relação ao tempo, ao tempo real das coisas. Angola chega aos trinta anos não como um modelo de país, não da forma ideal, mas sim da maneira possível, superando os enormes desafios e problemas acumulados ao longo destes anos. Mas chega com a certeza de estar no caminho correto e, aos poucos, começa a reunir as condições para ocupar o espaço que lhe cabe na comunidade internacional. E será com pessoas como o João, um rapaz muito simples mas que carrega a certeza da vitória como todo o povo angolano, um povo que sofreu durante quase quinhentos anos mas que nunca desistiu de lutar.

Viva o João! Viva os Joãos, os Pedros, as Marias, as Sonias e todos aqueles que fazem esta grande nação. Viva Angola!  


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