Bom dia a todos!
Este é um dia muito especial para mim. O título que esta casa teve a generosidade de me oferecer, muito me honra, mas acima de tudo me comove, pela forte simbologia que tem. Com este dia vem um turbilhão de memórias acumuladas, algumas até já esquecidas, desde aquele outro dia, lá atrás, em 1977, quando decidi fazer da Bahia o meu lugar. Mas seria ainda mais correto dizer que não fui eu quem decidiu: foi sim a Bahia que se fez lugar e morada em mim. Sem desmerecer Pernambuco, estado onde nasci, é na Bahia que me sinto em casa.
A Bahia revelou-me a vida. Me fez ver um Brasil muitas vezes belo, muitas vezes injusto. A Bahia me mostrou a África. Me deu futuro e mais do que futuro, passado, origem, pertencimento e paternidade. A Bahia me apresentou ao meu pai Xangô.
Fico particularmente feliz porque essa iniciativa de concessão do titulo por parte do meu amigo, o Deputado Jean Fabrício, tem sua origem também numa das mais legítimas representantes da Cidade da Bahia, essa guerreira que muito me orgulha e me honra com a sua amizade: Olívia Santana. Obrigado Jean, Obrigado Olívia.
Olívia vem dessa cidade que eu conheci aos dezessete anos, numa idade e num tempo propícios, que me permitiram viver nas ruas e conhecer de perto uma Salvador de verdade, essa cidade, negra e guerreira como Olívia.
Salvador, todos sabem, é maioritariamente negra e mestiça. É naturalmente negra e mestiça. Mas esta identidade precisou ser defendida e construída, ao longo de muitas gerações, para que fosse reconhecida, aceita e cultivada por uma sociedade que, em muitos momentos, se comprazia em parecer mais branca. Muita
coisa mudou desde o tempo em que os terreiros de candomblé eram objeto de repressão policial. Mas ainda aí está a intolerância manifestada.
Muita coisa mudou e não há como não reconhecer que esta cidade cada vez mais se reconhece no espelho de uma cultura mestiça, na qual os negros, a despeito da longa exclusão de ordem econômica e social, são os protagonistas principais. Nesta aventura civilizatória chamada Bahia, negros e mestiços deram o tom, marcaram o traço que nos distingue e nos faz singulares ao lado dos demais brasileiros.
Mas me parece que vivemos uma espécie de esquizofrenia. Somos orgulhosamente negros em âmbitos diversos das artes, da cultura, da religiosidade, mas ainda pouco, muito pouco, no exercício da cidadania, no acesso aos bens materiais, no usufruto dos próprios espaços físicos da cidade, na presença de negros e mestiços nas instâncias de decisão, na partilha do poder econômico e político.
Muita coisa mudou. Mas não é por acaso que a última vez que esta cidade teve um prefeito negro foi por indicação, há trinta anos. A partir de 1985, nós voltamos a votar para Prefeito. Nesses 27 anos, elegemos 7 vezes o prefeito e agora vamos eleger o oitavo. Entre eles, nenhum negro. Não que eu tenha nada contra prefeitos brancos, mas penso que é estranho que, numa cidade com mais de 80% da população negra e
mestiça, a identidade cultural e étnica não tenha repercussão no voto. E antes do voto, na existência de um número mais significativo de lideranças negras pleiteando o exercício da atividade política formal. Há ainda poucos negros na atividade política, talvez pelos mesmos motivos que são ainda poucos nas universidades, nos melhores empregos, nos cargos de decisão, etc, a despeito dos avanços ocorridos no país na última década, com a saída de milhões de brasileiros da linha de pobreza.
Essa questão, os senhores sabem, é mais antiga e profunda. Remonta a mais de 400 anos de história. Começa com o negro sendo arrancado dos seus lares, transportados como mercadoria por milhares de quilômetros de distância, sendo transplantados para uma terra que não era a sua, para servirem aos senhores brancos. E que senhores eram estes?
Os nossos antepassados. Vejam as nossas árvores genealógicas e vão perceber que boa parte dessas famílias ainda está aqui entre nós. Com esta lembrança, não desejo alimentar o ódio, ou propor fraturas numa sociedade que, bem ou mal, já descobriu que não é europeia e já se aceita como mestiça. Com esta lembrança,
desejo somente dizer que a escravidão é obra nossa. E a sua “desinvenção”, a sua reparação, devia igualmente ser, por dever moral e determinação política, uma tarefa nossa. Podemos dizer que aqui, hoje, não há um só culpado pela escravidão e pela exclusão histórica do negro em nossa sociedade. Mas somos todos igualmente
responsáveis pela correção do que a história teima em não corrigir, ou o faz de forma excessivamente lenta.
Lá atrás veio a nossa Princesa Isabel para dar a liberdade tão merecida a estas populações, liberdade que, é bom que se diga, fomos a última nação a acolher, de tanto que temíamos reconhecer como ilegal a escravidão. E se reconhecemos não foi por uma questão humanista. A abolição aconteceu nos estertores de um mundo que já estava fadado a desaparecer: o das economias baseadas no trabalho escravo. Libertamos os escravos quando eles já não seriam tão necessários, viáveis, lucrativos. Concedemos aos escravos a liberdade e esta, para muitos, passava a ser um fardo, impossibilitados que estavam para exercê-la, por falta de perspectivas, de meios materiais, de educação, de formação para novos meios de trabalho que, em pouco tempo, fariam o Brasil apostar na mão de obra livre, barata e mais qualificada do imigrante europeu.
Pois é, meus amigos, estas pessoas que foram arrancadas de suas famílias, que foram comercializadas como mercadoria, que receberam uma liberdade tardia, não foram alvo, nem lá no Ato da Abolição, nem nos anos seguintes da nossa República, não mereceram nenhum plano, projeto ou programa nacional de reparação e reinserção na vida econômica e social do país. O que obtiveram e têm obtido é à custa da própria capacidade de desafiar a injustiça, o preconceito e de se reinventar como cidadãos brasileiros.
E assim, sem indenização, sem reparação, sem nenhuma política específica para este amplo segmento da sociedade, se consolidou a maior injustiça da história do nosso país. E hoje, 140 anos depois, todos nós somos beneficiários dessa atrocidade, ainda que beneficiários indiretos ou passivos, somos beneficiários. Nas mínimas
coisas. Senão vejamos.
Enquanto o meu filho pode ter acesso à escola de qualidade, porque eu tive uma condição privilegiada, apesar do bolsa família milhares de meninos ainda estão fora das salas de aulas para ganhar algum dinheiro e ajudar em casa. Trabalham para ajudar pais que também trabalharam na infância, que provavelmente não estudaram, ou não passaram das primeiras séries do ensino fundamental. Enquanto as escolas dos meus filhos têm segurança, carga horária cumprida rigorosamente e professores preparados, as escolas da maior parte da população da Bahia – e é aí que os negros permanecem também em sua maioria, continuam a viver sob o medo, a inoperância e a incerteza de aprender.
Muitos, por esforço próprio e por alguns avanços registrados no país, têm conseguido furar o bloqueio e chegar à universidade. Hoje, no Brasil, não é raro encontrar alunos universitários que representam a primeira geração da família a continuar e completar os seus estudos. Mas as condições ainda são muito desfavoráveis, injustas e desiguais. Muitos dos que conseguem entrar na faculdade acumulam o estudo com o trabalho, pois de outra maneira não teriam como pagar a escola. Quando conclui os estudos, outra batalha. Enquanto os nossos filhos têm oportunidades de trabalho, para estes heróis do nosso povo são limitadíssimas as possibilidades.
É estranho não termos políticos negros bem sucedidos? Médicos, engenheiros, cientistas negros em maior quantidade? Não, é a coisa mais natural do mundo, é a consequência do que estamos construindo. Uma sociedade verdadeiramente sem direitos iguais. Por todos estes motivos é que defendemos as cotas, não só nas escolas, mas também nos postos de trabalho, na política e na comunicação. Só assim conseguiremos mudar essa nossa triste história, que é a verdadeira responsável pelos números que constatamos nos presídios, nas vítimas de assassinatos, roubos e outras estatísticas da violência...e quão graves são os números da violência particularmente no nosso Estado da Bahia e na sua capital, e aqui me permito abrir um parênteses para registrar e lembrá-los também que o nosso estado é campeão, por seis anos consecutivos, de crimes homofóbicos.
Senhores deputados e amigos, sei que numa homenagem como esta se recomenda uma fala comedida, uma fala mais apropriada a alguém que está aqui na condição de convidado. Mas peço que sejam mais generosos do que já foram, ao me conceder tão grata homenagem, me permitindo mais um minuto ainda da vossa atenção. Sei da importância desta casa e do trabalho dos senhores e, por isso mesmo, é que não desperdiçarei a rara oportunidade que tenho, neste momento, para fazer um pedido: o de que sejam intransigentemente responsáveis com os cidadãos da Bahia, que se ressentem da falta de uma política mais agressiva, com mais investimento público dirigido para programas que atenuem as discrepâncias que insistem em nos dividir.
Os problemas estão aí à nossa frente sem que façamos nada de verdadeiro e radical para mudar esta triste realidade. Sem alarmismo, ou fazemos alguma coisa ou estamos andando a largos passos para a convulsão social, para o agravamento do quadro de violência galopante que tem dominado a Bahia nos últimos anos. Enquanto isso quais são as prioridades do nosso estado? O delírio de gastar mais de dez bilhões de reais para fazer uma ponte, para ligar uma cidade em crise com outras mais decadentes. Isso pode ser prioridade quando ainda falta tanta coisa básica para nós, como saneamento, escolas, saúde, qualidade de vida? E falta, nunca é demais repetir, principalmente para as camadas sociais nas quais estão, em sua imensa maioria, os negros baianos.
A prioridade de um governo tem que ser a de servir ao cidadão. Hoje, exatamente como antes, a prioridade é a política, continua sendo a política. Ao serem eleitos, os governantes preocupam-se legitimamente em ter maioria e garantir a chamada governabilidade. Afinal, precisam desta maioria para fazer aquilo que prometeram. Mas esta tal governabilidade acaba se tornando um valor em si. O governante desvia-se daquilo para o qual foi eleito e fica completamente imerso na tarefa de cooptar e angariar aliados para se manter no poder e garantir a sua hegemonia a qualquer preço. É lamentável que quando obtêm esta hegemonia e podem enfim realizar o que sempre sonharam e prometeram, já não podem, seja pela miopia própria do exercício inconsequente do poder, seja porque o arco de alianças já não permite a mesma liberdade de antes. Devíamos fazer política para governar (e governar bem) e não o oposto de governar para continuar fazendo política, para continuar dando as cartas na política.
A Bahia sempre inovou na cultura, sempre revelou ao Brasil grandes artistas e pensadores, e não podemos nos deixar atropelar por uma política nacional que, com todos os seus méritos, não dá conta da nossa singularidade, dos nossos problemas, das nossas riquezas e mazelas, historicamente pautadas, repito mais uma vez, pela fissuras produzidas pela escravidão e perpetuadas pela falta de políticas reparadoras.
Em vez de ficarmos a reboque de um entusiasmo desenvolvimentista, sem sustentação na realidade, nós podemos dar o exemplo de como fazer da política um instrumento de transformação social. Nós podemos fazer e dizer ao Brasil: olhem para a Bahia, vejam o quanto a política na Bahia fez para criar uma sociedade
integrada, justa e democrática, sem alimentar rancores e tampouco sem se contentar com os mitos de um sincretismo que supostamente nos faz iguais. Para haver igualdade de direitos é preciso que haja na prática a igualdade de oportunidades. Mas esta ainda não existe e, lamentavelmente, obedece a mecanismos de exclusão, que se não são diretamente raciais, contribuem para que negros e mestiços permaneçam onde sempre estiveram.
Chega deste desequilíbrio. Chega de nos tentar convencer que não existem coisas muito graves em nossa sociedade, como se todos os dias do ano fossem dias de comunhão, de festa, de carnaval. Nós, que vivemos em ilhas de conforto, esquecemos que do outro lado existem pessoas em continentes de miséria. Podemos não ter feito nada para que esta miséria exista. Mas encontramos nesta sociedade desigual as nossas boas oportunidades, e não temos feito o suficiente para que esta miséria deixe de ser a regra.
A Bahia tem que reagir. Fará um grande favor a ela mesma e ao Brasil, se reagir. Os deputados e o executivo têm que governar para as pessoas e não para se perpetuarem no poder.
Que tipo de sociedade queremos?
Eu aqui proponho uma resposta. Queremos uma política de reparação para a Bahia, que seja referência para o Brasil. Penso que esta é a maior vocação dessa cidade, assumir a sua cor, a sua história, as suas origens, sem temor e sem omissão. Não podemos corrigir erros, se não admitirmos à partida que os erros existem. Não podemos fazer melhor, se não admitirmos que não fizemos ainda o suficiente, nem tão bem quanto somos capazes. Na escola, nos postos de trabalho, nesta e em outras casas da política, a Bahia precisa ser o espelho da sua gente e não o será enquanto as boas cadeiras, das escolas, do trabalho e da política, forem ocupadas majoritariamente por brancos. Que cada um de nós faça a parte que lhe cabe.
Sou, como dizia no início, um baiano por adoção, mas nem por isso me sinto menos baiano que os aqui nascidos. Amo esta terra e, creiam senhores e senhoras, é por amor que aproveitei este momento para pedir aos senhores que estejam atentos ao povo da Bahia. O povo que vos elegeu. E estou certo de que os senhores terão ouvido as minhas palavras, imbuídos deste mesmo amor à nossa terra
Chego ao fim da minha fala, lembrando de dois patrimônios ambientais da Bahia, que pra mim são também patrimônios afetivos, objetos da minha devoção. Falo do Parque São Bartolomeu, templo a céu aberto, degradado pela destruição ambiental e pela violência. Templo cuja preservação até aqui devemos tributar aos terreiros da Bahia. Terreiros estes que não têm sido tratados com a devida atenção, mas que são o esteio de muitas comunidades e que contribuem para o equilíbrio daquilo que restou das nossas roças e matas urbanas.
Por fim, falo da Chapada Diamantina, pedaço da Bahia onde procuro estar o maior número de vezes que posso, e que tem sido continuamente ameaçada pelo desmatamento e pelas queimadas. Peço ao nosso Governo que volte os seus olhos para estas riquezas da Bahia. Salve o Parque São Bartolomeu. Salve a Chapada Diamantina.
Sem eles seremos um pouco menos baianos. Um pouco menos merecedores deste nome que hoje os senhores me deram a alegria de conceder.
Muito obrigado.
Vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=xpmT1g5_FM8